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domingo, 4 de maio de 2014

Porque me saiu a Lotaria!

Porque me saiu a Lotaria! 

A conversa decorreu num entrecruzar de vocábulos próprios de dois não nativos a tentar comunicar em inglês. O cenário era móvel; o velho e grande táxi rolava velozmente em direcção ao novo aeroporto de Indianapolis. As nuvens dançavam num céu escuro de um princípio de tarde em Indiana.

Não me saíam da cabeça as palavras da mensagem que me tinham deixado há pouco mais de 15 minutos no telefone do meu quarto. Havia tempestade em Nova York, o meu voo das 17 tinha sido cancelado e teria que voar para o aeroporto para tentar apanhar ainda lugar nalgum outro avião. Para tentar descontrair, entabulei três dedos de conversa com o comandante do táxi...afinal, se não conseguisse estar em Nova York antes das 20...lá voava, porque voava, o 757 da Continental para Lisboa, sem este vosso amigo...

Era da Etiópia! Estava em Indianapolis há uns meses, ainda desenquadrado, isolado da família que tinha deixado em África. Parecia-me, pelo retrovisor grande e sujo de gordura, que o rapaz, o meu táxi-comandante, não teria muito mais que 20 anos...
E se não houvesse outro avião para me levar?... A hora tinha que ser de calma e tranquilidade...afinal não podia fazer nada antes de chegar ao aeroporto...e o comandante até conduzia com celeridade e menos mal...Intrigava-me a presença do meu interlocutor em terras de Indiana! Como tinha ido ali parar aquela alma?! Mais uma olhadela ao tráfego que era muito, para o banco do pendura cheio de trapos e jornais amarrotados, para o retrovisor para tentar aferir melhor a idade do comandante e...tive que disparar a caçadeira da curiosidade.
O que fazia um Etíope em Indianapolis, qual abelha na chuva?! Afinal a resposta era muito fácil. Porque me saiu a Lotaria!
Amaldiçoei a dificuldade de entendimento entre um Português e um Etíope...se calhar ele não tinha percebido a pergunta...ou, se calhar, eu não tinha percebido a resposta. Repeti a pergunta, repetiu a resposta. Porque me saiu a Lotaria! O trânsito tinha agora encalhado no acesso ao aeroporto...a nossa conversa também! Arrisquei uma nova pergunta, com cara de dúvida para ele me poder observar no retrovisor. A lotaria!!!???
Afinal a Lotaria não era a Lotaria...mas sim a Lotaria! Fiquei a saber que todos os anos o Governo Americano faz uma lotaria para admissão, como trabalhadores, de uns 20 mil africanos! Nos vários países de África, principalmente os mais pobres, os jovens mais qualificados jogam nesta lotaria da vida, tentam um lugar ao Sol, ir arrecadar uns tostões para sobreviverem eles e a família. O meu comandante, após um duro processo de selecção que tinha contemplado uns 4 mil Etíopes, tinha tido, já em Indianapolis, dois duros meses em casa de um indivíduo que eu não percebi como tinha aparecido na vida dele; finalmente, após ter conseguido identificação legal, tinha aberto uma conta num Banco...e a vida rolava...e o táxi também... Disse-me que tinha muitas saudades da família e que só iria ficar o tempo indispensável para angariar sustento para si e para os seus.

Agora...o trânsito rolava mais fluentemente...a nossa conversa também! É incrível ver como o falar de aspectos da vida pessoal pode aproximar dois conhecidos de há uns minutos! Paguei, saí em passo acelerado e procurei o “check-in”. Não podem imaginar a festa que o Sr. Comandante me fez, à
despedida!
O voo estava efectivamente cancelado!!! Havia ainda lugar no das 13.30...atrasado para as 17.30 (mais tarde do que era o meu voo inicial!)

Foi a minha vez de pensar na minha família e na minha casinha! Iria perder o voo em Nova York? A espera de mais de 4 horas pareceu-me infinita. A passagem pelo aeroporto de Nova York, envolto em tempestade, foi quase épica! Saída do avião, faltavam 15 minutos para o voo de Lisboa! Por sorte
tinham trocado os terminais e, agora, o terminal era o mesmo, cerca de 7 Portas para a esquerda... corri... voei... entrei no avião! Quando consegui recuperar o fôlego e a minha pobre frequência cardíaca de sedentário pouco habituado a corridas, dei por mim a recordar a odisseia daquela 6ªf, 13 de Novembro! Lembrei-me do Etíope, do meu táxi-comandante, das tropelias da vida...
Nem consegui assustar-me com a terrível descolagem, no meio da tempestade de Nova York!
Afinal, tinha conseguido superar aquela 6ªf, 13, ... afinal, tinha-me saído...a lotaria...

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